segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A origem da Broa de Avintes...

Texto de José Vaz sobre a recente polémica relativa à origem da Broa de Avintes:

"Veio ao conhecimento público, muito recentemente, uma opinião sobre a “origem africana” da Broa de Avintes. Quem a produziu foi o Sr. ex-cônsul honorário de Moçambique no Porto, Augusto Macedo Pinto, advogado com escritórios no Porto e na Beira (Moçambique).


A propósito daquela opinião, também o Sr. Joaquim da Costa Gomes, Boronário-Mor da Confraria da Broa de Avintes emitiu, no Jornal da Tarde da RTP1, de 9 de Agosto de 2010, o seu parecer acerca do mesmo assunto.


Como historiador e co-autor da História de Avintes, recentemente editada senti-me, naturalmente, interpelado a falar sobre as referidas opiniões.


A Broa de Avintes nasceu no tempo de D. Dinis?


A Historia de Avintes, ao longo dos tempos, tem sido objecto de alguns mitos e de algumas invenções.


Uma delas, e muito propalada, é a da Broa de Avintes ter nascido pela determinação de D. Dinis em enviar o fabrico do pão de milho para Avintes e o de trigo para Valongo por causa dos incêndios. O autor desta interpretação, sem correspondência histórica, deve-se ao nosso emérito conterrâneo Dr. João Aves Pereira (1891-1973) que a publicou no jornal A Luz do Operário, nº 409, de 13 de Novembro de 1934 e mais tarde replicada numa enciclopédia e em dois dicionários.


No que a Avintes diz respeito, o que de fundamental diz o citado documento de D. Dinis (ano de 1282, 25 de Fevereiro) é: não sejam os d’Avintes constrangidos de aportarem nos lugares onde lhes aprouver. Em linguagem familiar: [não impeçam [os moleiros] de Avintes de chegarem com as suas farinhas onde quiserem e não lhes apliquem quaisquer portagens].


Portanto, primeira conclusão: a Broa de Avintes e o pão de Trigo de Valongo não têm origem no tempo de D. Dinis.


E o que é, quando e onde nasceu a Broa de Avintes?


A Broa de Avintes é uma variedade de pão feito com farinha de milho e de centeio, água, sal, fermento e cozido em forno de lenha [de preferência pinho], durante cinco ou seis horas.


A Broa de Avintes, cujos ingredientes básicos são comuns ao alimento universal chamado Pão assume, na igualdade de alguns dos seus ingredientes, um processo de fabrico diferenciado que lhe dão um sabor, uma cor, um odor, uma textura e uma visualidade [formato pentagonal] diferente dos produtos da mesma família alimentar.


Avintes, desde o século XII até ao Liberalismo, sempre foi uma terra autónoma que teve a prerrogativa de aplicar a justiça em primeira instância, em casos cíveis, como atesta a existência centenária do nosso tribunal ao ar livre – a Pedra da Audiência.


Mesmo nos três forais outorgados a Vila Nova de Gaia, pelos reis D. Afonso III, D, Dinis e D. Manuel I, em nenhum deles, Avintes esteve incluída naquele concelho.


Mas, tirando o aspecto da autonomia, Avintes pouco se destacou de muitas outras terras portuguesas, quer em termos de desenvolvimento, quer em termos de tutela de senhores nobres e religiosos a quem pagava tributos e rendas.


Mas tudo se alterou, a partir dos inícios do século XVIII, devido à introdução e aproveitamento dos produtos panificáveis do milho maíz [Broa de Avintes] e a um conjunto de circunstâncias conjugadas.


Estas circunstâncias foram materializadas com a existência de terras de regadio, com recursos hídricos, com uma indústria moageira, com uma auto-estrada-de-água (Rio Douro), com a proximidade a uma grande cidade comercial (Porto), com a existência do centeio e com lenhas necessárias à panificação. A somar a tudo isto, acrescente-se a clarividência dos ancestrais avintenses em utilizar as condições que tinham ao pé da porta e de as aproveitar em favor da sua prosperidade. Outro factor de grande significado foi o dos avintenses fazerem a divisão do trabalho: eles, tratavam do amanho e a sementeira das terras de cultivo e elas [as Barqueiras e as Padeiras] transportavam e comercializavam o pão na cidade do Porto.


E foi o que aconteceu. Avintes enriqueceu e transformou-se radicalmente. Podemos afirmar com segurança histórica que Avintes só afirmou a sua identidade e a sua notoriedade na região norte e no país a partir do início século XVIII. As mudanças verificadas naquele século foram enormes: aumentou a população; incrementou-se a indústria moageira e o transporte e comercialização da broa de Avintes na Cidade do Porto [em 1758, semanalmente, moíam-se 7500 kg. de farinha e transportavam-se para sustento da cidade do Porto 3.840 kg. de pão cozido]; criou-se a 1ª Escola Primária de Avintes, em 1782; construiu-se, em 1742, o tribunal ao ar livre, A Pedra da Audiência; ampliou-se a Igreja Matriz em 1776/77, compraram-se sinos; construiu-se doze capelas, implantadas noutras tantas quintas; formaram-se duas confrarias laico-religiosas; organizou-se a Companhia de Ordenanças [Militares] de Avintes que agrupava as freguesias de Vilar de Andorinho e a de Seixezelo; construíram-se o Padrão Vermelho, as Alminhas do Senhor do Padrão e o Padrão do Alferes; construíram-se muitas casas, ainda hoje de pé, que exibem nos dinteis das portas de entrada a data das suas construções.


Foi, por consequência, durante o século XVIII que a Broa de Avintes nasceu, fruto introdução do milho maíz e das condições locais existentes em Avintes.


Tal como defendi nas 1ªs. Jornadas de História das Pequenas Pátrias, Avintes, é uma filha do milho maíz e a sua broa foi gerada, nascida e criada na margem esquerda do Douro.


Estas são as evidências históricas fundamentadas em fontes documentais e estudados pelos historiadores.


Agora afirmar que a Broa de Avintes tenha origem no “Mocates/Mikate moçambicano” porque “ o aspecto e o sabor é muito semelhante à broa de Avintes” “, e “com quase certeza científica, [dizer] que a origem não é de Portugal”, parece-me, no mínimo, uma mera opinião e, no máximo, uma afirmação bombástica para efeitos de protagonismo.


Em que investigações e em que metodologias se apoiou o Sr. advogado Augusto Macedo Pinto para chegar aquelas afirmações tão definitivas?


Quem e quando foi transportado o “Mocates/Mikate moçambicano” para ser replicado em Avintes. Que ingredientes, processo de fabrico, formato e qualidades organolépticas tem o “Mocates/Mikate moçambicano” para se afirmar com “certeza quase científica” que a Broa de Avintes é uma cópia da africana?


Depois a afirmação “que a origem não é de Portugal, porque ainda não havia cá milho” sugere-nos uma interrogação. Como explica o Sr. advogado Augusto Macedo Pinto a pátria da broa feita só com milho (chamada a de lavrador) que é conhecida na Galiza, no Brasil e em Portugal? A de Avintes, que leva centeio e milho, não é portuguesa nem avintense porque ainda não havia cá milho e a que é só fabricada com milho, donde veio?


Quando o Sr. advogado Augusto Macedo Pinto fala em sabor está a referir-se a que tipos de Broa de Avintes? À que é produzida pela maioria dos fabricantes avintenses e que segue o formato ancestral [pentagonal] ou a de outro fabricante que lhe dá o formato da broa de lavrador e lhe adiciona um produto adocicante?


Depois, quando se fala de milho referimo-nos a quê? Ao sorgo, ao milho-alvo, ao milho-painço, ao milho-miúdo ou ao milho maíz,, de origem sul-americana?


Se o Mocates/Mikate moçambicano é feito com o milho maíz como é que se sabe por quem e quando o cereal sul-americano foi introduzido na antiga possessão portuguesa de Moçambique?


Em História, são perigosos os raciocínios baseados “no que parece é!” e, neste caso, afirmar que a Broa de Avintes veio de Moçambique, com os argumentos que foram utilizados e publicados, é o mesmo que dizer que estamos perante uma broa insólita: tem asas e voou."

José Vaz

Historiador e Presidente da Direcção do Centro de Documentação e Investigação em História Local – Audientis

 

 

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